Exposição "Invenção dos Reinos" ocupa o espaço Accademia na Oficina Francisco Brennand
Sob curadoria de Ariana Nuala e Marcelo Campos, coletiva apresenta recorte de cem trabalhos do acervo do artista pernambucano em diálogo com obras de quase 30 artistas

No dia 11 de novembro, a Oficina Francisco Brennand inaugurou a mostra “Invenção dos Reinos”, na Accademia, tradicional espaço expositivo da instituição cultural. A coletiva inédita apresenta uma seleção de mais de cem criações do ceramista e pintor pernambucano em convergência com obras – entre telas, fotografias, instalações e esculturas – de quase 30 artistas, a maioria do nordeste do país.
A abertura marca uma nova fase na Oficina. Será a primeira vez que a instituição – que nasceu há 52 anos como espaço de trabalho de Francisco Brennand e, até agora, destinou suas atividades quase que unicamente ao seu fundador, salvo exceções pontuais – receberá trabalhos de outros artistas. A iniciativa integra uma nova política de exposições e atende a um desejo do próprio ceramista, que, pouco antes de sua morte, em 2019, criou o instituto sem fins lucrativos que rege, desde então, a atuação do museu. “Invenção dos Reinos” tem patrocínio do Banco Santander e da Vivix.
“Propor um diálogo entre obras de Francisco Brennand e de outros 30 artistas de diferentes gerações e origens é um gesto que acena para uma Oficina cada vez mais inclusiva. Esse aspecto coletivo da exposição transmite a ideia de uma paisagem que pode ser ocupada e compartilhada por todos de forma participativa, em plena sintonia com a programação cultural e educativa oferecida pela instituição ao longo do ano”, afirma Marcos Baptista.
Ariana Nuala, gerente de Educação e Pesquisa da Oficina, e Marcelo Campos, curador-chefe do MAR (Museu de Arte do Rio), assinam a curadoria do projeto, uma proposição crítica pelo imaginário de Francisco Brennand, que teceu cosmologias a partir de suas pesquisas sobre culturas, divindades e santos que influenciaram seu pensamento artístico. Ao mergulhar no universo do artista, a exposição provoca as intricadas conexões entre a natureza e a criação de “reinos”, além de examinar a maneira como ele inseriu sua própria cidadela na mata, emergindo com um mundo singular.
“A curadoria elaborada por Ariana Nuala e Marcelo Campos estimula o olhar para uma integração entre elementos artísticos, históricos e sociais que potencializa as emoções, sensações e pensamentos aguçados por um lugar dotado de infinitas possibilidades simbólicas”, analisa Baptista.
A proposta curatorial foi concebida depois de algumas caminhadas de Marcelo pela Oficina e a partir de conversas com Ariana e Henrique Falcão, educador e pesquisador da equipe de educação da instituição cultural, e também assistente de curadoria da exposição.
“Eu fui caminhando ali para entender um pouco a presença daquele lugar em relação à própria região da Várzea e, por outro lado, para pensar esses universos pelos quais Brennand se interessou e ao mesmo tempo de onde veio. ‘De onde vinha tanta referência, tanta relação da criação dele com aqueles elementos?’”, questionou-se o curador. “Conversando com a Ariana e Henrique e observando a região, cheguei nessa ideia de que trataríamos, então, da invenção dos elementos que Brennand trabalhou ao longo da vida. Na época eu pensei em usar um termo sobre uma espécie de cidade imaginada, do lugar imaginado que o universo do Brennand nos coloca e chegamos no nome ‘Invenção dos Reinos’.”
O ponto de referência levantado pelos curadores na idealização da exposição é a Jurema, uma religiosidade de matriz indígena, originária antes do período colonial, que se encontra com saberes remanescentes dos povos afrodiaspóricos. Esta tradição é bastante reconhecida nos territórios do Nordeste, e tem suas semelhanças, apesar de suas especificidades locais, entre os estados da Paraíba e Pernambuco. A exposição traça um paralelo da crença – na qual os lugares sagrados são chamados de reinos e cidades e são habitados por seres encantados como pássaros, serpentes e peixes – com as imagens presentes na obra de Brennand e a cidadela que construiu ao longo de sua vida no bairro da Várzea.
“Pensamos na possibilidade de entender o universo do Brennand em torno desse encantamento, dos seres que ele inventou. Por outro lado, nas tradições afro-indígenas, advindas dos povos originários, isso tem um cotidiano muito estabelecido, onde os peixes, pássaros e serpentes são seres encantados. E quando vemos esses elementos estampados na obra de Brennand, na Várzea, inevitavelmente invocamos as tradições afro-indígenas como, por exemplo, a Jurema”, analisa Campos.
O projeto vai além da mera exposição artística, buscando aprofundar as cosmologias dos "reinos" que antecedem a presença da família Brennand na geografia que abrange Recife, Camaragibe e a Zona da Mata Norte de Pernambuco, territórios essenciais nas resistências indígenas e africanas. Com esse viés, a mostra presta homenagem às cosmologias negras e originárias que enriquecem esse espaço de mata.
“A exposição culmina em uma série de atividades que a gerência de Educação e Pesquisa tem realizado ao longo desses últimos anos. Convidamos mestres e mestras, artistas que são vizinhos à Oficina para compartilharem suas narrativas sobre este espaço, assim se tornou possível desenhar uma exposição que em sua forma, possa dar continuidade a estes processos que ainda não chegaram ao fim”, reflete Ariana Nuala.
Desse modo, as obras dos artistas convidados – majoritariamente negros e indígenas – ampliam questões que perpassam a poética de Francisco Brennand. A natureza não está afastada do ser humano, mas sim, o constitui em suas escolhas a partir das cosmologias que está atrelado, ou seja, os reinos que norteiam determinados cultos, também influenciam na relação com os bichos, as plantas, as águas e todos os demais seres.
“Quando observamos a exposição, notamos o encontro das tradições indígenas e africanas e, por outro lado, a presença de Brennand nesse encontro. A presença dele vem como alguém que pesquisava as tradições. Foi muito importante pensar também que aquelas imagens não foram apenas invenções da cabeça de um artista. Já havia uma presença de histórias, tradições, lendas de sereias, de pássaros e de ovos, todas de origem indígena e africana. Por isso, o convite a outros artistas e a ideia de colocar o Brennand dentro de um grupo e não o destacar como se houvesse uma invenção absoluta ali”, reflete Marcelo Campos.
Entre os artistas contemplados na exposição (confira a lista completa ao final do texto), merecem menção os pernambucanos Abelardo da Hora (1924-2014) e Helcir Almeida. O primeiro trabalhou na fábrica de cerâmica onde hoje se situa a Oficina quando Brennand era adolescente, além de orientá-lo em suas primeiras esculturas, enquanto o segundo foi o desenhista técnico que acompanhou Francisco Brennand desde sua chegada ao local, há mais de 50 anos. Responsável pela geometrização do Ofá (o arco e flecha que simboliza Oxossi em sua representação) na assinatura de Francisco e também no logo da Oficina, Helcir apresentará alguns desenhos autorais na exposição.
A invenção dos reinos
Por Ariana Nuala e Marcelo Campos
Pensar um projeto que se relacione, conviva e crie diálogos com o imaginário de Francisco Brennand e com a sua mais ambiciosa criação, sua cidadela, a Oficina Francisco Brennand, é entender a necessidade de escuta do lugar. Cada lugar, segundo o geógrafo Milton Santos, é "um momento do imenso desenvolvimento do mundo". Com isso, no desenvolver desta exposição, palavras superlativas, como o "mundo", o "universo" foram recorrentes ao tratarmos da criação de Brennand. Contudo, muito antes de a criação se tornar característica de um ou outro artista no Brasil, as sociedades resultantes dos saberes e conhecimentos dos povos originários e afrodescendentes já imaginavam, já “inventavam” lugares, moradas, universos. E faziam muito mais, pois o imaginar se justificava em conexões ancestrais, no contato com seres e lugares divinizados, onde fauna, flora e espiritualidade residem em plena comunhão. Esses lugares são chamados de muitos nomes, Aruanda, Orun, Cidade, Reino. Nas tradições da Jurema Sagrada, são as Cidades e os Reinos encantados pela fumaça que nos guiam para a vida e para a morte.
Com isso, o que apresentamos nesta exposição, a partir das obras de Francisco Brennand, são artistas que comungam de criações que escutam as matas, as várzeas, as florestas, os rios. Escutam e se conectam com encantados, com as serpentes, os pássaros, com narrativas da criação do mundo, e inventam reinos. Artistas que se comprometem em não se desassociar de seu território, de sua morada, mas que confluem entre as migrações operadas a partir dos ventos e das forjas.
A Oficina Francisco Brennand fica envolta por um terreno de profunda densidade que é lar de seres diversos. Seu bioma pertence à Mata Atlântica, seu território chega a ser constituído por cerca de 700 hectares entre olhos d’água, folhas, frutos e bichos que cotidianamente se fazem presentes em toda a Oficina. Foi morada dos povos Tabajaras e, posteriormente, no século XIX, tornou-se lugar de refúgio abrigando um pedaço da extensão do Quilombo do Catucá. Hoje, sua área perpassa as cidades de Recife, Camaragibe e São Lourenço da Mata, onde encontramos remanescentes e práticas culturais que remetem a essas memórias, a exemplo dos maracatus e caboclinhos, como o Caboclinho Sete Flexas, no Recife, e o Caboclinho Tabajaras de Camaragibe.
Entre os muitos agentes que habitam de modo diário a Oficina Francisco Brennand, há também a participação de pessoas que trabalham incansavelmente para salvaguardar as histórias de seus povos, são esses mestres e mestras da cultura, lideranças comunitárias, sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas e indígenas, que estão presentes em atividades artísticas e de educação do programa que atualmente constrói a Oficina, principalmente os encontros Ocupa Oficina e Trilhas do Capibaribe, importantes para a pesquisa e disseminação de um fazer que amplie narrativas únicas.
Há um canto que é comumente evocado quando se entra na mata e tem sido compartilhado através dessas ações, envolvendo saberes tradicionais e comunidades vizinhas. O canto sugere uma profundidade que não pode ser medida, um absoluto não saber, onde se respeita o desconhecido, o que não é nitidamente visível. Respeita-se, então, o que não se sabe, mas é lançado um chamamento para que outros companheiros possam acompanhar a pessoa que canta em seu trajeto. Assim, malungos e caboclinhos são convidados a adentrar este espaço. Ecoam:
Que mata é essa que nela eu vou entrar, que nela eu vou entrar, com meus caboco’linhos...
Que mata é essa que nela eu vou entrar, que nela eu vou entrar, com meus caboco’linhos…
Esta floresta foi chamada por Francisco Brennand de Mata do Segredo, mas que é conhecida comumente por Mata da Várzea, e ainda por moradores mais antigos como Mata do Catimbó, revelando a relação de praticantes de religiosidade de terreiro com ritos na mata, ou até mesmo Mata dos Brennand. Nesta última nomeação, a sua identidade de propriedade privada. Este lugar onde as folhas nascem e descansam, um caminho longo e entrada de porta da Oficina, turvado pelas sombras de árvores, entre elas macaibeiras, dendezeiros, mangueiras, jaqueiras e jambeiros, é um ambiente onde se ocultam linhas; os caminhos para suas quedas d'água não são lineares, e não existe apenas um, o trajeto se faz em seu emaranhado. Sua única reta é a da flecha antes de ser arqueada.
Partindo, então, de tantos caminhos, a tarefa de adentrar ao labirinto erigido por Francisco se complexifica, um espaço serpenteado por seres de seu imaginário, mas que também apresenta outras cosmologias endereçadas em distintos territórios, às quais o artista tomou para si, assim como também em ficções da literatura e do cinema. É preciso se dar conta da possibilidade de um lugar que abriga muitos. Brennand desperta sua contradição através de sua curiosidade e também de seu poder atrelado à posição de artista moderno. Ao se encantar pela forma do arco e flecha, mesmo sem saber inicialmente que este era símbolo do Orixá Oxossi — o Ofá —, acabou por desviar a si mesmo de uma verdade baseada em apenas um caminho projetado a partir de um único início, meio e fim.
Lista de artistas
Abelardo da Hora (PE)
Abiniel J. Nascimento (PE)
Adailton de Dedé (AL)
AORUAURA (PE)
Bezinho Kambiwá (PE)
Bozó Bacamarte (PE)
Clara Moreira (PE)
Daiara Tukano (SP)
Diogum (PE)
Fakhô Fulni-ô (PE)
Francisco Brennand (PE)
Francisco Graciano (CE)
Fykyá Pankararu (PE)
Geraldo Dantas (AL)
Helcir Almeida (PE)
Ianah (PE)
Iara Campos e Íris Campos (PE)
Jaider Esbell (RR) José Cláudio (PE)
Lidia Lisbôa (PR)
Luiz Marcelo (BA)
Elson e Mestre Gerar (BA)
Nádia Taquary (BA) Paulo Apodonepá (MT)
Rafaela Kennedy (AM)
Rayana Rayo (PE)
Reginaldo de Mestre Manoel Quebra Pedra (PE)
Thiago Costa (PB)
Tiganá Santana (BA)
Zé Crente (AL)
Sobre a curadora Ariana Nuala
Ariana Nuala (Recife, Brasil — 1993) se relaciona com coletivos artísticos que discutem questões relacionadas a poder e permanência, buscando tramas visíveis e invisíveis que tornam possíveis as existências de práticas coletivas que constantemente atualizam as noções sobre diáspora. Combinando estratégias que começam no corpo e se condensam em escrita, propõe fazer de seu exercício na curadoria um exercício poético. É formada em Lic. em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestranda pelo PPGAV da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em História da Arte. Tem formação no programa acadêmico de campus expandido Museos/Anti-Museos na UNAM (2019) e recebeu diploma superior em Estudos Latinoamericanos e Caribenhos pela CLACSO (2021). Atualmente é Gerente de Educação e Pesquisa na Oficina Francisco Brennand e foi coordenadora do educativo no Museu Murillo La Greca (2018 - 2020). É articuladora no CARNI - Coletivo de Arte Negra e Indígena e também é atuante no Nacional TROVOA, coordena a plataforma independente Práticas Desviantes e o PULO - Plataforma de Estudos sobre Imagens da Diáspora.
Sobre o curador Marcelo Campos
Marcelo Campos é carioca e vive e trabalha no Rio de Janeiro. É curador-chefe do Museu de Arte do Rio (MAR), diretor do Departamento Cultural da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e membro dos conselhos do Museu do Paço Imperial e do Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Desde 2004 curou diversas exposições como À Nordeste (SESC 24 de Maio, 2019); O Rio do Samba (Museu de Arte do Rio, 2018); Orixás (Casa França Brasil, 2016) e Bispo do Rosário, um Canto, Dois Sertões (Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, 2015). É doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da UERJ e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Campos é autor de Escultura contemporânea no Brasil: Reflexões em dez percursos (2016) e possui textos publicados sobre arte brasileira em inúmeros livros, catálogos e periódicos nacionais e internacionais.
SERVIÇO
“Invenção dos Reinos” Exposição coletiva com curadoria de Ariana Nuala e Marcelo Campos De 11 de novembro de 2023 a outubro de 2024, na Accademia, na Oficina Francisco Brennand, Várzea, Recife, Pernambuco.
Horário de visitação:
Terça a domingo
10h às 18h, com venda de ingressos até às 17h na bilheteria
Ingressos:
Inteira R$ 50
Meia R$ 25
Para moradores de Pernambuco:
Inteira R$ 40
Meia R$ 20
Vendas online: https://oficinafranciscobrennand.byinti.com/#/event/visite-oficina-francisco-brennand
Endereço:
Propriedade Santos Cosme e Damião
Rua Diogo de Vasconcelos, s/n
Várzea, Recife-PE
Informações à imprensa local:
Dupla Comunicação
Eduardo Sena (eduardo@duplacom.com.br)
Ariel Sobral (ariel@duplacom.com.br)
Informações à imprensa nacional:
Factoria Comunicação
Vanessa Cardoso (vanessa@factoriacomunicacao.com)
Eduardo Marques (eduardo@factoriacomunicacao.com)
